Meu primeiro contato com
a Clarice Lispector foi no Ensino Médio, por meio da novela A Hora da Estrela. Apesar de não ter
lido o livro, soube do enredo por conta do sarau que aconteceria na escola onde
eu estudava, no qual haveria uma dramatização da história. Macabéa já havia me
intrigado ali. Algum tempo mais tarde, comprei o livro com profunda intensão de
lê-lo e finalmente adentrar o mundo de Clarice. Tentei algumas vezes, mas achei
a leitura terrivelmente difícil e, por fim, não saí da primeira página.
Por muito tempo acreditei
que “Clarice não é para mim” e deixei A
Hora da Estrela para um outro momento. Mal sabia eu o quanto estava
enganada. Foi na faculdade, cinco anos depois de ter conhecido brevemente a
Macabéa, que mergulhei no universo de Clarice e me apaixonei. O professor de
literatura havia sugerido como leitura a obra Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres. Arrisquei, permiti,
entreguei: me apaixonei.
Para a aula que teríamos
sobre a autora, o professor Jean Pierre convidou uma amiga, a professora
Elisabete, que é uma grande estudiosa e apaixonada por Clarice e sua obra, a
fim de nos passar o amor e o conhecimento que ela possui. Como a USP está
vivendo uma intensa greve, reunimo-nos no restaurante Sweden e tivemos uma
conversa muito agradável, muito mais como um clube de leitura que uma aula, com
direito a café e pão de queijo. Realmente um ótimo momento!
A professora Elisabete
nos falou dos vídeos e entrevistas sobre a Clarice que poderíamos encontrar na
internet; contou-nos um pouco sobre a vida da autora e sua obra e também sobre
as biografias existentes; e, por fim, fizemos uma troca gostosa sobre as
impressões que tivemos ao ler o romance proposto.
“Este livro se pediu uma liberdade maior que tive medo de dar. Ele está muito acima de mim. Humildemente tentei escrevê-lo. Eu sou mais forte do que eu.”
Na obra Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres
há apenas dois personagens: Lóri e Ulisses. O livro conta, acima de tudo, a
viagem empreendida por Lóri em busca de si mesma, do prazer sem culpa, da
existência sem dor. Ulisses funciona como um farol, a luz que guia Lóri na
procura por um caminho sereno, de felicidade, sem angústias. A razão para isso
é que Lóri e Ulisses se gostam muito, mas ele acredita que ela precisa estar
pronta, precisa aprender a se amar e a viver em paz antes de se entregar a ele.
“Era cruel o que fazia consigo
própria: aproveitar que estava em carne viva para se conhecer melhor, já que a
ferida estava aberta.”
Ulisses é um tanto controlador
e deixou dúvidas em mim sobre a realidade de seus sentimentos por Lóri: às
vezes é difícil ter certeza de que ele a ama; em muitos momentos parece que ele
apenas a deseja sexualmente e precisa exercer certo domínio sobre a Lóri: ele
diz quem ela deve ser, o que deve fazer, do que deve gostar; é sempre ele quem
liga e marca os encontros e quem a deixa esperando semanas por um telefonema;
algumas vezes, inclusive, ele sente a necessidade de ferir Lóri com as
palavras.
“Sou um monte intransponível no meu
próprio caminho. Mas às vezes por uma palavra tua ou por uma palavra lida, de
repente tudo se esclarece.”
A empreitada de Lóri é
dolorosa e difícil. Ela passa por muitos altos e baixos, desprende muito tempo
ruminando os conselhos e ensinamentos de Ulisses, começa a vislumbrar pequenos
fios de felicidade gratuita e de serenidade, porém se assusta e logo mergulha
em sua angústia solitária novamente. Mas ela aprende, aos pouquinhos ela vai
conseguindo, vai se permitindo, se entregando... até que ela consegue realmente
perceber as mudanças. É nesse ponto que ela começa a se entender, a se
autoconhecer, a encontrar a liberdade e a tomar as rédeas da própria vida: ela
liga para o Ulisses e lhe diz que precisa de um tempo só e que ligaria para ele
quando se sentisse pronta. Foi nesse momento, em que perdeu o controle sobre a
Lóri, que Ulisses percebeu que a amava, mais do que a desejava: ela estava
pronta.
“Um dia será o mundo com sua
impersonalidade soberana versus a minha estrema individualidade de pessoa mas
seremos um só. (...) E o que é que eu faço? Que faço da felicidade? Que faço
dessa paz estranha e aguda, que já está começando a me doer como uma angústia,
como um grande silêncio de espaços?”
O
momento em que Lóri experencia o contato de sua pele com o mar deserto é
simplesmente maravilhoso e muito me lembrou uma experiência parecida que tive
há não muito tempo. Aí Lóri tem os primeiros vislumbres de si mesma e de sua
conexão com o Universo e a descrição dessa passagem é belíssima, provavelmente
a minha preferida.
“Só poderia haver um encontro de seus
mistérios se um se entregasse ao outro: a entrega de dois mundos incognoscíveis
feita com a confiança com que se entregariam duas compreensões.”
O final do texto é
lindíssimo e bastante sensual: a autora nos mostra a concretude da experiência
amorosa de Lóri e Ulisses, do amor a si mesmo e ao outro, “o encontro consigo
mesmo em face do outro”, a entrega sem medo e sem estranhamento.
“O amor por Ulisses veio como uma
onda que ela tivesse podido controlar até então. (...) E quando notou que
aceitava em pleno o amor, sua alegria foi tão grande que o coração lhe batia
por todo o corpo, parecia-lhe que mil corações batiam-lhe nas profundezas de
sua pessoa. Um direito-de-ser tomou-a, como se ela tivesse acabado de chorar ao
nascer.”
Uma
Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres me tocou muito. Os
sentimentos abordados são extremamente universais e fizeram com que eu me
identificasse muito; há insights que
eu mesma já havia tido nessa minha curta existência. Fiz tantas marcações
durante a leitura que se torna muito difícil eleger minhas passagens
preferidas. Trata-se de uma verdadeira busca por autoconhecimento e por uma
felicidade genuína; ensina-nos que, apesar de sermos seres melancólicos, a vida
não precisa ser assim, tão cheia de dor que não haja espaço para pequenas
alegrias e gratidão. Lóri aprendeu que essa é uma busca constante e
interminável e Clarice Lispector nos mostra isso com belíssimas palavras, uma
escrita intensamente poética – e não tão fácil, nem tão óbvia, devido,
principalmente, aos frequentes fluxos de consciência –, uma vírgula que inicia
o romance e os dois pontos que o finaliza, lembrando-nos de que somos seres em
constante mudança e aprendizado. É preciso imersão e paixão para ler Clarice.
“Você tinha me dito que, quando
perguntassem meu nome eu não disse Lóri, mas “Eu”. Pois só agora eu me chamo
“Eu”. E digo: eu está apaixonada pelo teu eu. Então nós é. Ulisses, nós é
original.”
Um ponto interessante
nessa obra é a intensa intertextualidade com a Bíblia e a constante presença de
Deus na história, que para Lóri é “o Deus”, já que é ser substancial e adjetivo
nenhum lhe cabe. A relação da protagonista com a divindade e com a morte é
muito intrigante, profunda, paradoxal e, ao mesmo tempo, muito bonita. Lóri
sente-se atraída tanto pela vida como pela morte, essa última provocando-lhe
grande curiosidade, já que a primeira lhe causa intensa dor.
“Lóri passara da religião de sua
infância para uma não religião e agora passara para algo mais amplo: chegara ao
ponto de acreditar num Deus tão vasto que ele era o mundo com suas galáxias:
isso ela vira no dia anterior ao entrar no mar deserto sozinha. E por causa da
vastidão impessoal era um Deus para o qual não se podia implorar: podia-se era
agregar-se a ele e ser grande também.”
Os livros da Clarice
costumam tratar muito mais de sensações do que de um enredo tradicional, como
estamos acostumados: quase não há diálogos e ações, mas há muitos recortes de
pensamentos e sentimentos, que podem ser considerados, em si, como os próprios personagens,
tal como o cortiço o é na obra de Aluízio Azevedo, por exemplo. Nesse livro de
Clarice, o uso do discurso indireto livre é magistral e abundante, de modo que
o narrador em terceira pessoa é frequentemente confundido com a personagem,
concorrendo com uma linguagem intimista e psicológica. Além disso, há uma
passagem dos monólogos recorrentes nos livros anteriores para o tom dialogal. As
epifanias da protagonista são várias e ocorrem durante todo o texto,
característica marcante na obra de Clarice. A qualidade literária em Clarice
Lispector é inquestionável.
* * *
Uma comparação
interessante que surgiu em nossa conversa foi a de que Ulisses seria a Penélope
(de Odisseia) da Lóri e que Lóri seria a Penélope de si mesma, na medida em que
ambas as personagens – Lóri e Ulisses – esperam incessantemente pela própria
Lóri, assim como Penélope esperou pelo seu marido Odisseu (ou Ulisses, na
mitologia romana).
Depois de ter lido essa
obra e de ter trocado experiências de leitura, encantei-me com Clarice
Lispector. Não me considero tão melancólica, mas sinto que sou profunda e
intensa como ela. E literatura é isso, não é? É paixão e intensidade, é
entender a si e ao mundo por meio das palavras e da poesia, sem precisar ter
regras, certos e errados: pode ser simplesmente sobre sentimentos, como faz
Clarice com maestria.
* * *
Clarice Lispector nasceu
na Ucrânia em 1920 e, ainda bebê, mudou-se para Pernambuco com sua família em
fuga dos ataques aos judeus e naturalizou-se brasileira. Perdeu a mãe aos nove
anos, o que fez com que a figura masculina fosse sempre muito presente em sua
vida e em sua obra. Em 1943 casou-se com um diplomata e pode viajar o mundo.
Foi tradutora de Agatha Christie e Edgar Allan Poe e jornalista, tendo
entrevistado inúmeras personalidades. Em uma de suas entrevistas, ela diz não
se considerar uma escritora profissional, embora reconhecida nacionalmente,
pois se assim o fizesse, provavelmente perderia a liberdade de escrever por
escrever, de escrever aquilo que sentisse que deveria. Escreveu oito romances,
uma novela, seis livros de contos e um livro de crônicas, além de alguns livros
infantis, a pedido de seu filho mais velho; há, ainda, livro com as entrevistas
feitas enquanto jornalista, livros de correspondências, livro com seus escritos
no Correio Feminino (assinado com pseudônimo), biografias, entre outros. Para
sua época, a autora foi realmente revolucionária, colocando em pauta temas
interditos capazes de escandalizar a sociedade patriarcal.
O interessante da obra de
Clarice é que, nos romances, as mesmas questões aparecem sempre, com a
diferença de que vão amadurecendo e tomando formas distintas, mas estão sempre
ali. As questões apresentadas em Uma
Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres (1969) já estavam presentes, em outros
formatos, em seu primeiro romance Perto do Coração Selvagem (1943).
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