29 de dezembro de 2016

Pedro,


Pedro,

Não sei o que fazer para lidar com o barulho surdo que a tua ausência deixara. Eu não sei existir. Viver dói, dói, dói tão fundo. A espiral de sonhos em que tu me meteste é pura desilusão. A sinuosidade das tuas meias-verdades, quase-mentiras, são mais encaracoladas que esses cachos meus que tanto custo a aceitar, a amar.

Por favor, não me deixe só. Se é de fantasia que minha alma se alimenta, anseia, dê-me mais um copo destas tuas invenções. Um não, dê-me dez, mil, infinitos... Abastece-me de tuas lendas e ensina-me (engana-me) a existir essa existência sem vida, sem significado, sem âmago, sem essência.     

Pedro, esse abismo em que me encontro não tem chão, nem paredes. Não sei como chegar à saída. Que saída? Não há luz aqui. Não vejo breu, no entanto. Há apenas esses riscos vermelhos e amarelos; essas rajadas de vento coloridas.

Quando tu chegas, querido? Tu vais me trazer aqueles caracóis castanhos e azuis que me prometeste? 
Tu vens, sim?

Com amor e dor,

Helena

*

Bia N. | 13.06.2016

A Pinta ou Tudo Aquilo que Não Foi Dito


No teu pescoço nu, 
Dança corpulenta,
Qual famigerada pinta,
Cruel mancha castanha,
Rival de minhas loucuras.

Avulta sonho meu dilacerado
No convés de mim mesma.
Tua voz já desfocada me diz
Que o que não havia, acontecia
O cheiro agridoce de nossa volúpia
Entre lençóis fervendo os meus ouvidos.

E o só o que eu quero é o vervérbio: 
eu mais você é ou somos nós?

26 de dezembro de 2016

Clarice Lispector e as Profundezas de uma Alma Misteriosa


Meu primeiro contato com a Clarice Lispector foi no Ensino Médio, por meio da novela A Hora da Estrela. Apesar de não ter lido o livro, soube do enredo por conta do sarau que aconteceria na escola onde eu estudava, no qual haveria uma dramatização da história. Macabéa já havia me intrigado ali. Algum tempo mais tarde, comprei o livro com profunda intensão de lê-lo e finalmente adentrar o mundo de Clarice. Tentei algumas vezes, mas achei a leitura terrivelmente difícil e, por fim, não saí da primeira página.
Por muito tempo acreditei que “Clarice não é para mim” e deixei A Hora da Estrela para um outro momento. Mal sabia eu o quanto estava enganada. Foi na faculdade, cinco anos depois de ter conhecido brevemente a Macabéa, que mergulhei no universo de Clarice e me apaixonei. O professor de literatura havia sugerido como leitura a obra Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres. Arrisquei, permiti, entreguei: me apaixonei.
Para a aula que teríamos sobre a autora, o professor Jean Pierre convidou uma amiga, a professora Elisabete, que é uma grande estudiosa e apaixonada por Clarice e sua obra, a fim de nos passar o amor e o conhecimento que ela possui. Como a USP está vivendo uma intensa greve, reunimo-nos no restaurante Sweden e tivemos uma conversa muito agradável, muito mais como um clube de leitura que uma aula, com direito a café e pão de queijo. Realmente um ótimo momento!
A professora Elisabete nos falou dos vídeos e entrevistas sobre a Clarice que poderíamos encontrar na internet; contou-nos um pouco sobre a vida da autora e sua obra e também sobre as biografias existentes; e, por fim, fizemos uma troca gostosa sobre as impressões que tivemos ao ler o romance proposto.      
“Este livro se pediu uma liberdade maior que tive medo de dar. Ele está muito acima de mim. Humildemente tentei escrevê-lo. Eu sou mais forte do que eu.”

Na obra Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres há apenas dois personagens: Lóri e Ulisses. O livro conta, acima de tudo, a viagem empreendida por Lóri em busca de si mesma, do prazer sem culpa, da existência sem dor. Ulisses funciona como um farol, a luz que guia Lóri na procura por um caminho sereno, de felicidade, sem angústias. A razão para isso é que Lóri e Ulisses se gostam muito, mas ele acredita que ela precisa estar pronta, precisa aprender a se amar e a viver em paz antes de se entregar a ele.

“Era cruel o que fazia consigo própria: aproveitar que estava em carne viva para se conhecer melhor, já que a ferida estava aberta.”

Ulisses é um tanto controlador e deixou dúvidas em mim sobre a realidade de seus sentimentos por Lóri: às vezes é difícil ter certeza de que ele a ama; em muitos momentos parece que ele apenas a deseja sexualmente e precisa exercer certo domínio sobre a Lóri: ele diz quem ela deve ser, o que deve fazer, do que deve gostar; é sempre ele quem liga e marca os encontros e quem a deixa esperando semanas por um telefonema; algumas vezes, inclusive, ele sente a necessidade de ferir Lóri com as palavras. 

“Sou um monte intransponível no meu próprio caminho. Mas às vezes por uma palavra tua ou por uma palavra lida, de repente tudo se esclarece.”

A empreitada de Lóri é dolorosa e difícil. Ela passa por muitos altos e baixos, desprende muito tempo ruminando os conselhos e ensinamentos de Ulisses, começa a vislumbrar pequenos fios de felicidade gratuita e de serenidade, porém se assusta e logo mergulha em sua angústia solitária novamente. Mas ela aprende, aos pouquinhos ela vai conseguindo, vai se permitindo, se entregando... até que ela consegue realmente perceber as mudanças. É nesse ponto que ela começa a se entender, a se autoconhecer, a encontrar a liberdade e a tomar as rédeas da própria vida: ela liga para o Ulisses e lhe diz que precisa de um tempo só e que ligaria para ele quando se sentisse pronta. Foi nesse momento, em que perdeu o controle sobre a Lóri, que Ulisses percebeu que a amava, mais do que a desejava: ela estava pronta.         

“Um dia será o mundo com sua impersonalidade soberana versus a minha estrema individualidade de pessoa mas seremos um só. (...) E o que é que eu faço? Que faço da felicidade? Que faço dessa paz estranha e aguda, que já está começando a me doer como uma angústia, como um grande silêncio de espaços?”

            O momento em que Lóri experencia o contato de sua pele com o mar deserto é simplesmente maravilhoso e muito me lembrou uma experiência parecida que tive há não muito tempo. Aí Lóri tem os primeiros vislumbres de si mesma e de sua conexão com o Universo e a descrição dessa passagem é belíssima, provavelmente a minha preferida.

“Só poderia haver um encontro de seus mistérios se um se entregasse ao outro: a entrega de dois mundos incognoscíveis feita com a confiança com que se entregariam duas compreensões.”

O final do texto é lindíssimo e bastante sensual: a autora nos mostra a concretude da experiência amorosa de Lóri e Ulisses, do amor a si mesmo e ao outro, “o encontro consigo mesmo em face do outro”, a entrega sem medo e sem estranhamento.

“O amor por Ulisses veio como uma onda que ela tivesse podido controlar até então. (...) E quando notou que aceitava em pleno o amor, sua alegria foi tão grande que o coração lhe batia por todo o corpo, parecia-lhe que mil corações batiam-lhe nas profundezas de sua pessoa. Um direito-de-ser tomou-a, como se ela tivesse acabado de chorar ao nascer.”

Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres me tocou muito. Os sentimentos abordados são extremamente universais e fizeram com que eu me identificasse muito; há insights que eu mesma já havia tido nessa minha curta existência. Fiz tantas marcações durante a leitura que se torna muito difícil eleger minhas passagens preferidas. Trata-se de uma verdadeira busca por autoconhecimento e por uma felicidade genuína; ensina-nos que, apesar de sermos seres melancólicos, a vida não precisa ser assim, tão cheia de dor que não haja espaço para pequenas alegrias e gratidão. Lóri aprendeu que essa é uma busca constante e interminável e Clarice Lispector nos mostra isso com belíssimas palavras, uma escrita intensamente poética – e não tão fácil, nem tão óbvia, devido, principalmente, aos frequentes fluxos de consciência –, uma vírgula que inicia o romance e os dois pontos que o finaliza, lembrando-nos de que somos seres em constante mudança e aprendizado. É preciso imersão e paixão para ler Clarice.  

“Você tinha me dito que, quando perguntassem meu nome eu não disse Lóri, mas “Eu”. Pois só agora eu me chamo “Eu”. E digo: eu está apaixonada pelo teu eu. Então nós é. Ulisses, nós é original.”

Um ponto interessante nessa obra é a intensa intertextualidade com a Bíblia e a constante presença de Deus na história, que para Lóri é “o Deus”, já que é ser substancial e adjetivo nenhum lhe cabe. A relação da protagonista com a divindade e com a morte é muito intrigante, profunda, paradoxal e, ao mesmo tempo, muito bonita. Lóri sente-se atraída tanto pela vida como pela morte, essa última provocando-lhe grande curiosidade, já que a primeira lhe causa intensa dor.  

“Lóri passara da religião de sua infância para uma não religião e agora passara para algo mais amplo: chegara ao ponto de acreditar num Deus tão vasto que ele era o mundo com suas galáxias: isso ela vira no dia anterior ao entrar no mar deserto sozinha. E por causa da vastidão impessoal era um Deus para o qual não se podia implorar: podia-se era agregar-se a ele e ser grande também.”

Os livros da Clarice costumam tratar muito mais de sensações do que de um enredo tradicional, como estamos acostumados: quase não há diálogos e ações, mas há muitos recortes de pensamentos e sentimentos, que podem ser considerados, em si, como os próprios personagens, tal como o cortiço o é na obra de Aluízio Azevedo, por exemplo. Nesse livro de Clarice, o uso do discurso indireto livre é magistral e abundante, de modo que o narrador em terceira pessoa é frequentemente confundido com a personagem, concorrendo com uma linguagem intimista e psicológica. Além disso, há uma passagem dos monólogos recorrentes nos livros anteriores para o tom dialogal. As epifanias da protagonista são várias e ocorrem durante todo o texto, característica marcante na obra de Clarice. A qualidade literária em Clarice Lispector é inquestionável.

* * *

Uma comparação interessante que surgiu em nossa conversa foi a de que Ulisses seria a Penélope (de Odisseia) da Lóri e que Lóri seria a Penélope de si mesma, na medida em que ambas as personagens – Lóri e Ulisses – esperam incessantemente pela própria Lóri, assim como Penélope esperou pelo seu marido Odisseu (ou Ulisses, na mitologia romana).  
Depois de ter lido essa obra e de ter trocado experiências de leitura, encantei-me com Clarice Lispector. Não me considero tão melancólica, mas sinto que sou profunda e intensa como ela. E literatura é isso, não é? É paixão e intensidade, é entender a si e ao mundo por meio das palavras e da poesia, sem precisar ter regras, certos e errados: pode ser simplesmente sobre sentimentos, como faz Clarice com maestria.   

* * *
          
Clarice Lispector nasceu na Ucrânia em 1920 e, ainda bebê, mudou-se para Pernambuco com sua família em fuga dos ataques aos judeus e naturalizou-se brasileira. Perdeu a mãe aos nove anos, o que fez com que a figura masculina fosse sempre muito presente em sua vida e em sua obra. Em 1943 casou-se com um diplomata e pode viajar o mundo. Foi tradutora de Agatha Christie e Edgar Allan Poe e jornalista, tendo entrevistado inúmeras personalidades. Em uma de suas entrevistas, ela diz não se considerar uma escritora profissional, embora reconhecida nacionalmente, pois se assim o fizesse, provavelmente perderia a liberdade de escrever por escrever, de escrever aquilo que sentisse que deveria. Escreveu oito romances, uma novela, seis livros de contos e um livro de crônicas, além de alguns livros infantis, a pedido de seu filho mais velho; há, ainda, livro com as entrevistas feitas enquanto jornalista, livros de correspondências, livro com seus escritos no Correio Feminino (assinado com pseudônimo), biografias, entre outros. Para sua época, a autora foi realmente revolucionária, colocando em pauta temas interditos capazes de escandalizar a sociedade patriarcal.   
O interessante da obra de Clarice é que, nos romances, as mesmas questões aparecem sempre, com a diferença de que vão amadurecendo e tomando formas distintas, mas estão sempre ali. As questões apresentadas em Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres (1969) já estavam presentes, em outros formatos, em seu primeiro romance Perto do Coração Selvagem (1943).  

4 de fevereiro de 2016

[Resenha] Combo: Cemitério dos Livros Esquecidos



Tudo começou quando, depois de muito insistir, minha mãe me convencera a ler A Sombra do Vento, romance escrito pelo autor espanhol Carlos Ruiz Zafón. "Dê uma chance, tenho certeza de que você vai gostar", dizia ela, ignorando meus grunhidos de reclamação e indiferença. Até então eu não havia sido uma grande fã de livros - muito pelo contrário: fugia deles. Mas foi naquele momento de fraqueza, ao qual sou infinitamente grata, aquele instante em que sucumbi à tentação e às insistências de minha mãe e iniciei a leitura da obra, que eu soube que minha vida nunca mais seria a mesma: algo dentro de mim, bem fundo em minha alma, havia mudado para sempre. Daquele momento em diante, A Sombra do Vento passaria a ser não só o meu livro preferido da vida, mas o livro que me devolveu à vida (sim, com crase: eu é que voltei à vida, e não o contrário), o livro que me mostrou um universo de magia até então muito pouco explorado: o universo da literatura. E como se não bastasse, mais tarde, relendo a obra, descobri que o livro tratava, ainda que pouco, de um assunto que muito me interessa, para dizer o mínimo: a arte de editar um livro. Pois é, estudo Editoração. Ah! Além de tudo, uma das personagens principais tem meu nome, Beatriz <3

À época eu havia vivenciado por volta de 14 primaveras e lido apenas alguns livros, muito pontuais, dos quais a leitura de apenas um ou outro havia se dado por puro prazer. Paradoxalmente, desde os oito anos, quando descobri em mim o que acredito ser um talento inato, um dos meus maiores prazeres era escrever. Escrevia poemas, diários, redações e até músicas. No entanto, desde a indicação de minha mãe, gradualmente comecei a ler mais, simplesmente porque tinha vontade. Prezo muito pela qualidade das leituras que faço, e, como o tempo, essa criatura brincalhona e cruel, parece que encurta conforme fazemos anos, nunca fui capaz de ler tanto quanto gostaria - mas quem o é, não é mesmo?    

Quanta ladainha. 

O que eu realmente queria dizer é que o despontar desse ano de 2016 trouxe consigo a releitura de A Sombra do Vento e a leitura de outros dois livros do Zafón, ambos também pertencentes à série Cemitério dos Livros Esquecidos: O Prisioneiro do Céu e O Jogo do Anjo. E resolvi resenhar cada um dos três livros. Com a possibilidade de haver spoilers.

"Cada livro, cada volume que você vê, tem uma alma. A alma de quem o escreveu e a alma dos que o leram, que viveram e sonharam com ele. Cada vez que um livro troca de mãos, cada vez que alguém passa os olhos pelas suas páginas, seu espírito cresce e a pessoa se fortalece. "



Título Original: La Sombra del Viento
Editora: Suma de Letras
Páginas: 399
Gênero: Mistério/Drama/Romance
Ano: 2004
ISBN: 978-85-6028-009-4
♥*


Barcelona, 1945. Daniel Sempere tem apenas 11 anos e vive com seu pai, um homem calmo e quieto, em um modesto apartamento na rua Santa Ana em cima da livraria da família, um estabelecimento bastante especial, dedicado a edições raras e de colecionador. Certa manhã, Daniel acorda desesperado por não se lembrar do rosto de sua mãe, a quem perdeu quando tinha quatro anos. Para animá-lo, o sr. Sempere decide levar o garoto para conhecer um lugar novo, sobre qual ele não poderia contar a ninguém, nem mesmo ao seu melhor amigo, Tomás Aguilar. Tratava-se do Cemitério dos Livros Esquecidos, uma biblioteca labiríntica e gigantesca, localizada nas masmorras de uma Barcelona esquecida, onde havia milhares de livros eternamente salvos. De acordo com as regras do local, cada novo visitante e detentor do segredo tinha o direito de levar consigo qualquer livro que desejasse, desde que se comprometesse a cuidá-lo com muito carinho. 

Daniel escolhe para si A Sombra do Vento, escrito por Julián Carax, e devora o livro nas horas seguintes. Curioso por saber mais sobre o misterioso autor e para ler outras de suas obras, o garoto pede ajuda ao pai, que o leva para conversar com um amigo livreiro, o elegante e pretensioso Gustavo Barceló, o qual se mostra absolutamente interessado em adquirir a obra que Daniel levava consigo. Frustrado diante de suas tentativas fracassadas de comprar a obra por preços exorbitantes, o livreiro passa a sentir certo respeito pelo jovem rapaz, tão certo de seu compromisso com o livro, e o convida para um encontro na Biblioteca do Ateneo, onde ele, o livreiro, lhe contaria tudo o que sabia sobre Julián Carax. 

"Os livros são espelhos: neles só se vê o que possuímos dentro."

Nesse encontro, Daniel, conhece a sobrinha de Barceló, Clara, uma jovem de aproximadamente 20 anos, linda sedutora e cega. Impressionado com a moça, ele se oferece para ler para ela trechos de A Sombra do Vento no dia seguinte, após o colégio. As visitas à casa de Barceló passaram a ser constantes, quase que diárias, durante um período de quatro anos, e, inevitavelmente, a paixão que Daniel sentira por Clara aumentava a cada dia, a ponto de dar-lhe de presente o seu exemplar do livro que tanto adorava.     

Por duas vezes durante esse período, Daniel percebeu estar sendo observado por uma silhueta que mais lhe parecia uma sombra: um homem vestido de preto, com uma das mãos metidas no bolso e a outra segurando um cigarro, o rosto desfigurado por uma máscara de queimaduras e dor. Coincidentemente - ou não -, era exatamente igual a um personagem de A Sombra do Vento, Lain Coubert, o próprio diabo. Em um de seus encontros, quando Daniel já estava com mais ou menos 16 anos, a figura misteriosa dissera ao rapaz que desejava comprar, pela quantia que fosse, o seu exemplar do livro de Julián Carax, um dos últimos livros do autor ainda salvos... para queimá-lo. 

Cada vez mais intrigado, Daniel se entrega a um mundo de segredos e mistérios para tentar descobrir mais sobre o seu autor favorito e sobre o desaparecimento de quase todos os exemplares de seus livros publicados. Para isso, conta com a ajuda de seu fiel amigo Fermín Romero de Torres, um homem com um passado doloroso e inacreditável, por quem Daniel muito se afeiçoa e a quem convida para trabalhar na livraria do pai. Também não faltará ajuda de Gustavo Barceló e de Beatriz Aguilar, irmã do amigo Tomás, com quem Daniel passa a ter um relacionamento um tanto complicado.

"Quanto mais vazio está, mais rápido o tempo passa. As vidas sem significado passam ao largo como trens que não param na estação."

À primeira vista, o enredo pode até parecer simples, mas o que engrandece e enobrece a obra é a forma, o como. Os personagens, embora não sejam os psicologicamente mais bem construídos que eu já vi, são explorados na medida certa e arquitetados para serem apaixonantes; não foram se formando ao acaso, mas todos, até mesmo os secundários, contribuem infinitamente com o alto grau de detalhamento da narrativa, o que corrobora na construção de uma estória sem furos. Aqui, até mesmo a cidade de Barcelona se torna uma importante personagem da trama. Com passagens detalhadas e impressionantes por pontos importantes da cidade, Zafón nos faz imergir numa atmosfera muito realista do enredo, causando-nos a sensação de realmente conhecermos os lugares descritos. Tratando-se de uma cidade espanhola, isso se torna ainda mais louvável, na medida em que eu, particularmente, não tenho quase nenhum repertório para conseguir imaginar Barcelona com qualquer ajuda que não a do autor. Acredito ser impossível não se apaixonar pelos personagens, pelos cenários descritos e pela narrativa, que é mais uma poesia em forma de prosa.

Mistério, humor, romance, drama. É inacreditável o que o autor consegue fazer em uma única obra. Carlos Ruiz Zafón escreve com maestria e ganhou um lugar especial em meu coração logo nas primeiras linhas, logo que o conheci. Depois de seis anos desde a primeira leitura, reli meu livro preferido com o peito cheio de medo de me decepcionar, confesso, mas tudo o que senti foi uma emoção muito forte durante todo o tempo de leitura, comprovando a cada linha que A Sombra do Vento é e sempre será não só o meu livro preferido, mas também o livro mais especial da minha vida. Zafón não escreve: ele dá vida e poesia às palavras.

* * *

   
Título Original: El Prisionero del Cielo
Editora: Suma de Letras
Páginas: 246
Gênero: Mistério/Drama/Romance
Ano: 2012
ISBN: 978-85-8105-073-7


O Prisioneiro do Céu é o terceiro livro da coleção Cemitério dos Livros Esquecidos mas, cronologicamente, é quase como uma sequência do primeiro, A Sombra do Vento, e uma espécie de ponte para o que o segundo livro publicado, O Jogo do Anjo, muito embora esse último se passe anteriormente aos outros dois. Teoricamente, os livros são não conseguintes e, portanto, é possível lê-los na ordem que se queira. Até certo ponto isso é verdade, no entanto, a leitura de O Prisioneiro do Céu e o envolvimento com essa obra podem ficar prejudicados sem a leitura prévia de A Sombra do Vento, já que os personagens principais, inclusive, são os mesmos. Isso não acontece com o O Jogo do Anjo que, embora se passe na mesma Barcelona maldita e possua um enredo que se cruza aos outros dois, apresenta personagens novos e segredos novos. 

"As pessoas de alma pequena sempre tentam apequenar os demais."

Daniel Sempere e Fermín Romero de Torres, amigos de longa data e personagens apaixonantes, são novamente o centro deste enredo. Grosso modo, o livro nos relata a história da vida de Fermín até o momento em que encontra Daniel e explica, entre outras coisas, a ocasião da morte da mãe de Daniel, Isabella. A narrativa é intercalada entre o presente, contado por Daniel, e o passado, contado por Fermín, cujos segredos mais obscuros ficam ameaçados diante da visita inesperada de um fantasma de seu passado, arrancando-lhe lembranças que o fazem tremer de dor e medo. Aqui, vamos descobrir que o feliz encontro entre as vidas de Daniel e Fermín está longe de ser mera coincidência.  

O cenário de uma Barcelona devastada pela Guerra Civil Espanhola e ameaçada pela Segunda Guerra Mundial justificam um enredo envolto de jogos políticos, autoritarismo e brigas por poder, detalhes de extrema importância para conferir verossimilhança à narrativa  

Mais uma vez, com maestria, Carlos Ruiz Zafón nos transporta para uma Barcelona maldita, fazendo-nos sentir raiva, medo, angústia, dor juntamente com seus personagens, transbordando os sentimentos da página do livro para dentro de nós, leitores. A escrita de Zafón não é outra coisa senão peculiar. Escolhe um léxico devastador, constrói frases como ninguém, arquiteta personagens únicos, palpáveis e reais, sempre numa atmosfera misteriosa, de tirar o fôlego

        "O mundo é muito pequeno quando não se tem aonde ir."

Encontrei uma leitura mais fácil e fluida que a de A Sombra do Vento, mas logo percebi que não deveria me deixar enganar: cada pequenino detalhe é muito importante e não pode passar despercebido se quisermos entender bem o próximo livro, O Jogo do Anjo.      


                                                                                * * *
  
Título Original: El Juego del Ángel
Editora: Suma de Letras
Páginas: 410
Gênero: Mistério/Drama/Romance
Ano: 2008
ISBN: 978-85-6028-030-8




David Martín teve uma infância triste e solitária: abandonado pela mãe, passou a viver com um pai que, analfabeto e bruto, não compreendia nem aceitava a paixão do menino pela literatura. Aos 17 anos passou a trabalhar no jornal La Voz de la Industria, onde escrevia a editoria de polícia e onde seu pai havia trabalhado muitos anos como porteiro e, também, onde fora assassinado a balas por engano. Com a ajuda do bondoso dom Pedro Vidal, funcionário influente no jornal e em toda Barcelona, David ganhou a oportunidade de escrever crônicas no jornal, que se chamavam Os Mistérios de Barcelona, as quais não demoraram a cair nas graças do público - e dos editores. Martín recebeu, então, uma proposta de uma dupla de editores, Barrido e Escobillas, para escrever uma série melodramática, intitulada A Cidade dos Malditos, a ser publicada mensalmente, sob o pseudônimo de Ignatiu B. Samson. David Martín aceitou e, assim, tornou-se uma mercenário, escrevendo por dinheiro o que não lhe agradava. 

Com o dinheiro que recebia, o rapaz pode sair da pensão repugnante em que vivia e alugou uma casa que sempre lhe chamara a atenção e que sempre desejara ser sua: a casa da torre, como era conhecida. O lugar ainda guardava os pertences de seu último dono e possuía uma atmosfera, no mínimo, assustadora. Era possível sentir alguma coisa ali, a qual era sempre ignorada por David. Com o passar do tempo, o protagonista começou a passar mal com muita frequência, fato que ignorou durante muito tempo até se convencer de que era preciso procurar um médico. Quando o fez, foi diagnosticado com um tumor no cérebro e recebeu a notícia de que não teria mais que um ano de vida. 

À essa época, Martín já recebia há algum tempo uma correspondência misteriosa de um suposto e misterioso editor de Paris, Andreas Corelli, que apresentava grande interesse em fazer negócios com David. Quando finalmente se encontram, David Martín informa ao editor que não pode aceitar nenhuma oferta, pois o contrato que assinara com seus editores previa cinco anos de serviço exclusivo, ao que o homem replica dizendo que seus advogados encontrariam uma brecha. O rapaz acaba pernoitando na casa de Corelli, já que se sentia muito mal devido à doença. Sonha que passava por uma cirurgia no cérebro para retirar o tumor e quando acorda, sente-se como um novo homem: as dores, as náuseas e o mal estar haviam sumido e sua aparência é de um homem saudável. Curiosamente, naquela mesma noite, o prédio onde ficava estabelecida a editora para a qual David trabalhava pegara fogo e seus chefes morreram, de modo que o contrato já não tinha mais validade.

A partir de então os dois homens passam a se encontrar regularmente para acertar os detalhes do serviço. Andreas Corelli encomenda a Martín um livro, no qual ele deveria descrever uma nova religião, inventada por ele para o editor. No entanto, deveria ser uma narrativa envolvente, capaz de fazer as pessoas matarem por aquele ideal. Com o pagamento de 100 mil francos franceses, David acaba por aceitar a oferta e iniciar o trabalho.       

"A inveja é a religião dos medíocres. Ela os reconforta, responde à angústia que os devora por dentro."

Amigo do sr. Sempere, dono da livaria Sempere e Filhos, dedicada a edições raras e de colecionador, David Martín é levado para conhecer o Cemitério dos Livros Esquecidos, biblioteca labiríntica e gigantesca que guardava milhares de livros abandonados. Seguindo o protocolo do lugar, já que o visitava pela primeira vez, David escolheu um volume para levar consigo. Perdendo-se em meio ao labirinto, ele escolheu um manuscrito que se intitulava Lux Aeterna, de D.M., as mesmas iniciais que a dele, e cujo conteúdo era religioso.

Curioso, David leu-o muito atentamente até perceber que o livro havia sido escrito na mesma máquina de escrever que ele utilizava e que já estava na casa quando ele a alugou. A partir de então, o protagonista decide descobrir quem morara naquela casa antes dele e por que havia escrito aquele livro. Assim, David Martín se vê no meio de uma teia de segredos e mentiras e conforme vai seguindo os rastros encontrados, pessoas ligadas àquela história vão morrendo. E ele é o principal suspeito.   

Mais uma vez Carlos Ruiz Zafón surpreende com sua escrita peculiar e majestosa. Sabe construir como ninguém uma narrativa cheia de mistérios, segredos e mentiras; personagens que fazem jus ao conteúdo da obra, densos, bem explorados, enigmáticos; cenários de sua Barcelona maldita que nos faz conhecer uma cidade nunca antes visitada. 

"Entrei na livraria e aspirei aquele perfume de papel e magia que, inexplicavelmente, ninguém ainda tinha tido a ideia de engarrafar."

Misterioso até o fim, Zafón me confundiu como nunca nesse livro. Quando tinha certeza da loucura do protagonista, algum detalhe me fazia perceber que algo não se encaixava. O livro, dependendo da perspectiva, pode ser só um mistério muito bem construído, ou pode ir além e trazer algo de sobrenatural também; nesse caso, temos de acreditar que David Martín não estava louco. O grande problema aqui é uma questão muito sutil: o próprio David é quem conta a história. Então como saber em que acreditar? E é aí que me sinto ainda mais confusa, porque alguns detalhes de O Prisioneiro do Céu, do qual David Martín também é personagem, não batem com O Jogo do Anjo. Uma parte do desfecho da vida do próprio protagonista e as causas da morte de Isabella, mãe de Daniel Sempere, são diferentes nos dois livros. E O Jogo do Anjo termina assim, sem dar maiores explicações sobre essas pequenas contradições - feitas de propósito, acredito eu - e sem esclarecer grande parte do mistério, finalizando com uma pseudo-explicação, digamos, poética. 

Há, inclusive, uma frase bastante recorrente não só nesse romance, mas também em Marina, do mesmo autor, que nos põe em dúvida: "só se pode lembrar do que nunca aconteceu". Só o que eu posso dizer é que não sei o que sentir e que espero muito que o quarto livro da coleção realmente seja publicado e nos explique essas amarras que ficaram soltas.     

* * *

Beijos com carinho!